A expansão da Didi no Brasil: um debate sobre investimentos da 99Food, regulação do trabalho e sustentabilidade por Glauco Winkel

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A expansão da Didi no Brasil: um debate sobre investimentos da 99Food, regulação do trabalho e sustentabilidade por Glauco Winkel

2 de outubro de 2025 Blog 0

No início do mês passado, o presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva reuniu-se com representantes da empresa 99, que anunciaram a duplicação de seus investimentos no negócio de delivery de comida, a 99Food, totalizando R$ 2 bilhões apenas no primeiro ano de operação, até junho de 2026 (Brasil, 2025). 

A 99, fundada em São Paulo, foi adquirida em 2018 pela chinesa Didi Chuxing, passando a ser avaliada em cerca de US$ 1 bilhão e tornando-se o primeiro unicórnio brasileiro — denominação atribuída a empresas que atingem valor de mercado bilionário (G1, 2018). O investimento no setor de delivery expressa não apenas a intenção de competir com a Uber e o UberEats, mas também com o iFood, revelando uma estratégia de expansão da atuação da empresa chinesa em grandes mercados emergentes, como o Brasil.

Conforme ressalta Ricardo Geromel (2019, p. 128), em O Poder da China, após vencer a disputa contra a Uber em território chinês e consolidar-se nacionalmente, a Didi adotou uma estratégia de internacionalização baseada em parcerias estratégicas com empresas concorrentes da Uber, compartilhando tecnologia e capital. Entre os exemplos citados pelo autor, destacam-se a Lyft, nos Estados Unidos; a Ola, na Índia; a Grab, no Sudeste Asiático; a Careem, no Oriente Médio; a Taxify, na Europa; e a própria 99, no Brasil.

No encontro mais recente entre representantes da Didi e o governo Lula, o diretor-geral da 99 no Brasil, Simeng Wang, destacou: “Com o investimento desses R$ 2 bilhões, entendemos que precisamos tornar a vida dos nossos parceiros entregadores mais digna, oferecendo pontos de apoio para descanso, água e banheiros. Deste valor, R$ 50 milhões serão destinados à instalação desses pontos em todo o país” (Brasil, 2025).

Essa agenda é particularmente relevante para o governo brasileiro, visto que, em passado recente, discutiu-se nacionalmente a regulamentação do trabalho de motoristas e entregadores de aplicativo. Em fevereiro de 2023, o Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, chegou a afirmar que, caso empresas como a Uber considerassem inviável sua permanência no país diante das novas regras, poderiam deixar o mercado brasileiro, e que o governo não estaria preocupado com essa possibilidade (Gazeta do Povo, 2023). A declaração gerou ampla repercussão, levando a Uber a esclarecer que não pretendia sair do Brasil, apesar dos debates em torno das regulações (Rovaroto, 2023).

Nesse contexto, em março de 2024, o governo Lula apresentou o Projeto de Lei Complementar nº 12/2024, destinado principalmente a motoristas de aplicativos de transporte individual de passageiros (como Uber e 99). O texto previa direitos como remuneração mínima, jornada máxima e contribuições previdenciárias, mas não contemplava os entregadores de delivery (bicicletas e motocicletas) (Brasil, 2024). Atualmente, o projeto encontra-se parado no Congresso Nacional, o que demonstra que a regulação do trabalho por plataformas digitais permanece em aberto e integra um debate mais amplo dentro da agenda política nacional (Portela; Santos, 2025).

Adicionalmente, a 99 e a Didi anunciaram planos de investir US$ 6 bilhões no acesso de trabalhadores do setor de entregas a motocicletas e bicicletas elétricas, por meio de linhas de crédito, locação e acordos com fabricantes (Brasil, 2025). Marcas como Galgo, Riba e Vammo oferecerão condições especiais em suas motos elétricas para entregadores da plataforma, enquanto Bebike, Bliv e Riba já firmaram parcerias para fornecer bicicletas elétricas. Outra iniciativa ambiciosa é a aliança com a Yadea, fabricante chinesa e maior produtora mundial de motocicletas elétricas, que desenvolverá um modelo sustentável customizado às necessidades dos entregadores brasileiros (Braz, 2025).

A expectativa é que, além de contribuir para a redução das emissões de CO₂, esses veículos permitam aos entregadores reduzir em até 60% os custos com abastecimento e manutenção, o que deve ampliar significativamente sua renda líquida (Braz, 2025).

Dado o exposto, a expansão global da Didi marca uma estratégia mais ampla da China de inserção em mercados emergentes, como o Brasil, tal como já apontado por Geromel (2019). O caso da 99Food ilustra essa dinâmica, na medida em que a empresa não apenas amplia sua competitividade frente a concorrentes como iFood e Uber, mas também busca alinhar pautas sociais, como a melhoria das condições de trabalho dos entregadores, à agenda do governo Lula. Tal movimento evidencia a capacidade chinesa de articular mediações que extrapolam o plano econômico direto — a relação com consumidores e restaurantes — para construir pontes políticas junto ao Estado brasileiro.

Entretanto, essa aproximação não pode significar a renúncia, por parte do Brasil, a pautas históricas de defesa dos direitos trabalhistas. Afinal, a Didi continua sendo uma multinacional estrangeira, inserida em uma lógica de mercado competitivo, e sua atuação traz à tona não apenas os debates sobre condições de trabalho, mas também sobre a presença de grandes conglomerados privados em setores estratégicos da economia nacional. Assim, é fundamental que parcerias dessa natureza ocorram em sintonia com políticas nacionais progressistas, garantindo que a busca por investimentos estrangeiros seja acompanhada de contrapartidas claras: proteção social, fortalecimento da regulação estatal e, sobretudo, transferência de conhecimento — tanto no campo da gestão empresarial quanto da tecnologia.

A aposta em veículos elétricos, customizados para o contexto brasileiro, é um exemplo de como esses investimentos podem dialogar com os desafios do século XXI, combinando inovação, sustentabilidade e soberania. Contudo, cabe ao Estado brasileiro assegurar que tais iniciativas se insiram em uma estratégia nacional mais ampla, em que a cooperação internacional não se confunda com dependência, mas com uma oportunidade de desenvolvimento inclusivo e duradouro.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Durante reunião com Lula, representantes da 99 anunciam investimentos bilionários no ramo de delivery e entregadores. Brasília: Gov.Br, 15 set. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2025/09/durante-reuniao-com-lula-representantes-da-99-anunciam-investimentos-bilionarios-no-ramo-de-delivery-e-entregadores. Acesso em: 18 set. 2025.

BRASIL. PLP 12/2024 – Regulamentação de motoristas de aplicativo. Brasília: Câmara dos Deputados, 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2419243&utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 18 set. 2025.

BRAZ, Isabela. 99 e Didi lançam R$ 6 bilhões em créditos para motos elétricas. Canal VE, 16 set. 2025. Disponível em: https://canalve.com.br/99-didi-lancam-r-6-bilhoes-creditos-motos-eletricas/. Acesso em: 18 set. 2025.

GAZETA DO POVO. Ministro fala em “chamar Correios para substituir” caso Uber decida deixar o país. Curitiba: Gazeta do Povo, 6 jan. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/ministro-fala-em-chamar-correios-para-substituir-caso-uber-decida-deixar-o-pais/?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 18 set. 2025.

GEROMEL, Ricardo. O Poder da China: o que você deve saber sobre o país que mais cresce em bilionários e unicórnios. São Paulo: Gente Editora, 2019.

G1. Chinesa Didi Chuxing compra o controle da brasileira 99. Rio de Janeiro: G1, 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/chinesa-didi-chuxing-compra-o-controle-da-brasileira-99.ghtml. Acesso em: 18 set. 2025.

PORTELA, Maria Eduarda; SANTOS, Daniela. Aposta de Lula, PL dos motoristas de app completa 1 ano “estacionado”. Brasília: Metrópoles, 2025. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/aposta-de-lula-pl-dos-motoristas-de-app-completa-1-ano-estacionado?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 18 set. 2025.

ROVAROTO, Isabela. Uber vai sair do Brasil? Empresa esclarece afla do ministro do Trabalho. São Paulo: Exame, 6 fev. 2023. Disponível em: https://exame.com/negocios/uber-vai-sair-do-brasil-empresa-esclarece-fala-do-ministro-do-trabalho/?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 18 set. 2025.

Glauco Winkel é pesquisador sobre China e Sudeste Asiático no Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA) e pesquisador associado no Centro de Estudos em Geopolítica e Relações Internacionais (CENEGRI).