A nova estratégia de vistos da China e a disputa global por talentos por Glauco Winkel
No início deste mês, a China implementou um novo tipo de visto, conhecido como “visto K”, voltado à atração de jovens talentos estrangeiros nas chamadas áreas STEM — Science, Technology, Engineering and Mathematics.
A medida surge em um contexto de crescente competição internacional pela “disputa global por cérebros” (Tenente, 2025), especialmente em relação aos Estados Unidos, que tradicionalmente figuram como destino preferencial de pesquisadores, estudantes e profissionais altamente qualificados.
A criação do visto simplifica os processos de entrada e permanência de profissionais estrangeiros. Diferentemente de modalidades anteriores, a nova categoria não exige vínculo empregatício prévio, permitindo que o interessado se estabeleça no país para, então, buscar oportunidades de trabalho (Wang, 2025). Essa flexibilização deve beneficiar tanto startups com recursos limitados quanto estudantes estrangeiros formados em território chinês.
O movimento da China ocorre em contraste com as medidas adotadas nos últimos anos nos Estados Unidos, que incluem aumento de deportações, restrições à matrícula de estrangeiros em universidades e maiores custos para empresas que contratam trabalhadores imigrantes. Tal como evidenciado na recente disputa judicial entre Donald Trump e a Universidade de Harvard — após o presidente congelar repasses e adotar políticas mais restritivas à presença de estrangeiros no país —, a instituição obteve vitória na Justiça, simbolizando a resistência de parte do setor acadêmico norte-americano às diretrizes governamentais (AFP, 2025).
Esse contexto ajuda a compreender a direção da política chinesa: enquanto Washington adota medidas de fechamento e restrição, Beijing busca ampliar sua atratividade internacional, sobretudo no campo científico e tecnológico. Mais do que uma simples política migratória, o novo visto integra um esforço mais amplo de reposicionamento estratégico, no qual a China procura ampliar sua capacidade de formação e atração de talentos em setores de alta complexidade, fortalecendo a base já existente e, assim, reduzindo gradualmente sua dependência do eixo norte-americano.
Além do objetivo econômico, a estratégia chinesa envolve dimensões de soft power e segurança nacional. Ao atrair pesquisadores e profissionais estrangeiros, o país projeta uma imagem de potência científica aberta e inovadora, fortalecendo sua influência internacional. Ao mesmo tempo, o estímulo à formação em áreas sensíveis — como semicondutores, biotecnologia e inteligência artificial — responde à necessidade de autonomia tecnológica e proteção de setores estratégicos frente à competição com os Estados Unidos.
Os números reforçam a necessidade da medida. Atualmente, a China reúne cerca de 300 milhões de trabalhadores técnicos e qualificados, dos quais aproximadamente 72 milhões são altamente especializados (Si, 2025). Apesar desse contingente expressivo, a demanda por mão de obra qualificada segue em expansão. No campo dos semicondutores, por exemplo, registrou-se um déficit de cerca de 230 mil profissionais em 2024; já na manufatura inteligente, a carência poderá alcançar até 9 milhões de trabalhadores até o final de 2025. No caso da inteligência artificial, a disparidade é ainda mais evidente: cinco vagas são disputadas por apenas dois candidatos, o que reforça a urgência da formação de capital humano capaz de sustentar o avanço tecnológico do país (Huld, 2025).
Assim, esta nova modalidade de visto deve funcionar como um instrumento de correção desse descompasso, facilitando a entrada de estrangeiros que possam contribuir para a inovação, a automação e o avanço científico do país. No entanto, é importante destacar que essa política também pode ser recebida com certa ambivalência dentro da sociedade chinesa, dada a possibilidade de intensificar a disputa por espaço no mercado de trabalho entre profissionais locais e estrangeiros. Esse quadro, somado às barreiras culturais e burocráticas, pode abrir espaço para manifestações de preconceito ou xenofobia, o que reforça a necessidade de cautela na análise dos reais impactos da medida.
A disputa entre China e Estados Unidos pelo recrutamento de talentos evidencia o peso da mão de obra qualificada na nova ordem global. Se, de um lado, os EUA reforçam barreiras, de outro, a China se posiciona como um polo alternativo de atração, ajustando sua política migratória aos desafios tecnológicos e geopolíticos.
Para o Brasil, esse cenário revela uma dicotomia que reúne oportunidade e desafio. De um lado, profissionais brasileiros das áreas de ciência e tecnologia podem se beneficiar do visto K, inserindo-se em centros de ponta e ampliando sua experiência internacional. De outro, o desafio consiste em assegurar condições de retorno e valorização desses talentos, uma vez que a falta de políticas eficazes de reintegração tem levado muitos brasileiros a permanecer no exterior. A questão central, portanto, não é a saída desses profissionais, mas a capacidade do Brasil de transformar essa mobilidade internacional em um ativo estratégico para o desenvolvimento nacional.
O ganho efetivo para o Brasil, nesse sentido, depende do fortalecimento de mecanismos de cooperação educacional e científica capazes de gerar benefícios mútuos. É fundamental que a circulação de profissionais entre Brasil e China resulte não apenas na fixação no exterior, mas também no fortalecimento de iniciativas em território nacional, com transferência de conhecimento, formação de redes de pesquisa e desenvolvimento tecnológico compartilhado.
Em síntese, a flexibilização de vistos pela China não apenas representa um marco com potencial para alterar a dinâmica da competição global por talentos, mas também oferece ao Brasil oportunidades e desafios de inserção nesse contexto. Essa conjuntura, contudo, evidencia a necessidade de aprofundar a cooperação técnica e científica de benefícios mútuos entre Brasil e China, de modo a converter o intercâmbio de profissionais e conhecimentos em um vetor concreto de desenvolvimento tecnológico para um “futuro compartilhado” entre as nações.
REFERÊNCIAS
HULD, Arendse. Navigating China’s Evolving Labor Market in 2025. China Briefing: Hong Kong, 9 abr. 2025. Disponível em: https://www.china-briefing.com/news/chinas-evolving-labor-market-2025/. Acesso em: 2 out. 2025.
SI, Cheng. Pool of skilled workers widens: Training programs, better rating system help professionals reap rewards. Beijing: China Daily, 27 set. 2025. Disponível em: https://global.chinadaily.com.cn/a/202509/27/WS68d7285ca3108622abca3373.html. Acesso em: 2 out. 2025.
TENENTE, Luiza. “Disputa por cérebros”: enquanto EUA afastam estrangeiros, China cria visto para atrair alunos e profissionais de fora. Rio de Janeiro: G1, 1 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/10/01/disputa-por-cerebros-enquanto-eua-afastam-estrangeiros-china-cria-visto-para-atrair-alunos-e-profissionais.ghtml. Acesso em: 2 out. 2025.
AFP. Harvard obtém vitória contra Trump na Justiça dos EUA. Rio de Janeiro: UOL, 3 set. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2025/09/03/harvard-obtem-vitoria-contra-trump-na-justica-dos-eua.htm. Acesso em: 13 out. 2025.
WANG, Vivian. Enquanto Trump tenta limitar trabalhadores estrangeiros, China busca atraí-los. São Paulo: Folha de S.Paulo, 30 set. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/09/enquanto-trump-tenta-limitar-trabalhadores-estrangeiros-china-busca-atrai-los.shtml. Acesso: 2 out. 2025.
* Glauco Winkel é pesquisador sobre China e Sudeste Asiático no Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA) e pesquisador associado no Centro de Estudos em Geopolítica e Relações Internacionais (CENEGRI).

