Lula no Golfo Pérsico: a dimensão estratégica nos desafios de reconstrução da inserção internacional por Mateus Santos
A mais recente viagem do presidente Lula ao Mundo Árabe chamou atenção para os mais diferentes fatores que impulsionam um princípio de reinserção do Brasil na região, considerando as especificidades geopolíticas, geoeconômicas e diplomáticas dos mais diferentes atores envolvidos.
Num espaço curto de tempo, o chefe de Estado brasileiro, acompanhado por diferentes autoridades institucionais, governamentais, além de organismos do setor privado, realizou uma viagem envolvendo Arábia Saudita, Qatar e Emirados Árabes Unidos. Nos três países, um sentido de um relacionamento multifacetado foi estabelecido a partir da promoção de iniciativas como encontros diretos com Chefes de Estado e Governo, assinatura de acordos de cooperação, perspectivas de atração de investimentos, além de debates sobre a conjuntura regional e global.
Nos caminhos de avaliação crítica sobre essa movimentação do governo brasileiro frente aos esforços de reconstrução da inserção internacional após quase uma década de declínio, esse texto avalia os diferentes sentidos inscritos no papel exercido pelo Mundo Árabe, em geral, e os três Estados destacados, em particular, num processo de reconstrução de pontes entre o Brasil e a região. Argumenta-se que, diante de uma perspectiva de afirmação de uma estratégia de ação externa de viés universalista, bem como de reposicionamento do país frente às dinâmicas globais de uma crise sistêmica, tais atores podem ser considerados indispensáveis frente aos horizontes geopolíticos estabelecidos pelos policy makers brasileiros. Associado a isso, desafios de natureza doméstica como a recuperação do crescimento econômico também impulsionam essa movimentação.
O Mundo Árabe na Política Externa Brasileira: traços entre o ontem e o hoje
Do ponto de vista do tempo histórico, as relações entre o Brasil e o Mundo Árabe assumem diferentes configurações que vão desde o reconhecimento de contribuições longevas na formação sociocultural do país até aos processos migratórios iniciados com maior força a partir das décadas finais do século XIX. Sem desconhecer a importância das relações estabelecidas pelas políticas de consulados nos antigos territórios pertencentes ao chamado Império Otomano e a movimentações peculiares como o interesse de Dom Pedro II pela região, uma História Contemporânea desse relacionamento se iniciaria em 1924, com o estabelecimento de laços formais entre Brasil e Egito.
Para Mansour Saleh Al-Safi (1993), a aproximação da diplomacia brasileira com a região obedeceu diferentes etapas. Entre os anos 1920 e o início da década de 1950, as relações diplomáticas se concentrariam em Estados como Síria e Líbano, reflexo do avanço dos processos de independência de antigos territórios controlados pela França e pelo Reino Unido, além da importância das comunidades sírio-libanesas no país. Em seguida, na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, um processo de aproximação com os Estados magrebinos foi impulsionado diante dos esforços de mundialização da PEB, sem necessariamente se traduzir, num primeiro instante, em resultados econômicos e políticos imediatos. Por fim, coincidindo com uma nova fase de afirmação do universalismo como princípio norteador da inserção internacional do Brasil, uma nova etapa de desenvolvimento das relações com o mundo árabe foi efetivada com as movimentações estabelecidas diante dos Estados do Golfo Pérsico, com destaque para a Arábia Saudita e o Iraque.
Sem desconhecer o risco de generalização histórica, as relações árabe-brasileiras a partir da segunda metade do século XX se estruturaram por meio de diferentes vetores. Do ponto de vista comercial, a região foi observada dentro das estratégias mais gerais de internacionalização do capitalismo brasileiro, envolvendo tanto a perspectiva de afirmação de um processo de substituição de exportações a partir dos anos 1960 quanto a concentração de esforços pela obtenção de recursos minerais e energéticos, indispensáveis para a manutenção de um projeto de desenvolvimento. Nas flutuações do capitalismo global, os chamados petrodólares se tornariam um fator de atração para diferentes países em desenvolvimento que, interessados na diversificação do mercado de capitais, encontraram novas possibilidades frente aos Estados e segmentos de investimento ligados aos países exportadores de petróleo.
Frente aos desafios político-diplomáticos, a importância da questão árabe-israelense enquanto uma das agendas geopolíticas mais importantes em nível regional no Pós-Guerra, além da participação dos Estados Árabes em diferentes organizações internacionais e esforços de revisão da ordem internacional vinculados ao chamado Terceiro Mundo promoveram perspectivas de ampliação no diálogo entre o Brasil e os atores em questão. Dessa forma, a região constituiu uma das zonas de relativo destaque dentro das estratégias mais gerais de diversificação de parcerias e desenvolvimento de maiores condições de projeção externa do Brasil. Se desafios sistêmicos como a Guerra Fria e a presença estadunidense na região, além das dificuldades decorrentes da dinâmica envolvendo o conflito com Israel e outros atores do chamado Oriente Médio, condicionaram também parte da atuação do Brasil, as diferentes tratativas no sentido de consolidar a presença do país no Mundo Árabe evidenciam a sua importância dentro das movimentações de natureza autonomista na trajetória da PEB.
Nas últimas duas décadas, as políticas brasileiras para o mundo árabe mantiveram, em certa medida, tais tendências gerais. Nos anos da Política Externa Altiva e Ativa dos dois primeiros mandatos do governo Lula, iniciativas como a ampliação das relações comerciais, a criação da Cúpula América do Sul – Países Árabes (ASPA) e o reconhecimento do Estado Palestino (2010) dialogavam com as expectativas de ampliação na capacidade de ação externa do Brasil, elevação dos diálogos com o chamado Sul – Global e busca por condições consideradas favoráveis ao seu próprio desenvolvimento (RICUPERO, 2017). Diante do declínio na inserção internacional do Brasil ao longo da década passada, as relações transitaram entre a prioridade estabelecida às agendas comerciais-financeiras e as dificuldades em redimensionar uma atuação geopolítica após a Primavera Árabe, especialmente com a queda de governos e regimes outrora aliados.
Nesse aparente descompasso entre a dimensão estratégica e a dimensão econômica, práticas como o impulso sugerido pelo Governo Bolsonaro frente às relações com Israel coexistiram com tentativas de ampliação das relações com os Estados árabes do Golfo Pérsico. Estimulado pelos sentidos mais gerais de aprofundamento do neoliberalismo no país e pela movimentação de grupos de interesse como o agronegócio, tais Estados assumiram um papel relativamente importante dentro das perspectivas brasileiras na região. Conforme dados disponíveis no Portal de Estatísticas do Comércio Exterior Brasileiro, sob responsabilidade do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, a Arábia Saudita representou cerca de 40% do total das importações brasileiras do Oriente Médio, num comércio deficitário para o Brasil (BRASIL, 2023). Do ponto de vista das exportações, entre os Estados Árabes propriamente ditos, as exportações brasileiras para o Emirados Árabes Unidos ultrapassaram a marca dos três bilhões de dólares, tornando Abu Dhabi o principal destino dos produtos nacionais.
Em 2023, diante do novo Governo Lula, a perspectiva de uma reconstrução de um tipo de inserção internacional mais autonomista, também associada aos problemas domésticos, reitera a importância de Abu Dhabi, Riad e Doha no xadrez geopolítico do Brasil.
Perspectivas sobre as relações com os Estados árabes do golfo no Governo Lula
Uma retrospectiva sobre o primeiro ano do Governo Lula e seus efeitos para as relações árabe-brasileiras evidencia a importância dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Qatar dentro de um processo mais complexo de reinserção do Brasil no plano regional. Em uma de suas primeiras viagens como presidente da República, a passagem de Lula por Abu Dhabi foi marcada pelo reconhecimento da importância do Estado emiradense no comércio exterior do país, ocupando atualmente a condição de principal destino das exportações brasileiras na região. No plano financeiro, o crescimento dos investimentos dos EAU no Brasil se materializa em diferentes áreas como transporte, energia e esportes. Do ponto de vista geopolítico, a presença de Abu Dhabi como membro não permanente na ONU, o avanço do seu processo de diversificação das relações externas e o seu crescente interesse em participar das grandes decisões globais evidenciam o caráter estratégico desse Estado para o Brasil.
País mais populoso entre as chamadas monarquias do golfo, a Arábia Saudita também ocupa uma dimensão relevante nos novos caminhos da PEB. De um dos principais aliados dos EUA no Mundo Árabe a uma das principais referências regionais de um processo de mutação geopolítica regional, Riad traduz seu poder econômico em poder político, transformando-se em um dos protagonistas após os ventos revolucionários da década passada. Frente aos desafios de modernização econômica e social liderado atualmente pelo príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman, sua condição enquanto novo membro do BRICS, além de suas movimentações na direção de Estados como a China e a Rússia demonstram a importância saudita na arquitetura política regional. Do ponto de vista econômico, além de tradicional parceiro comercial do Brasil, o interesse pelo aumento dos investimentos dos Fundos Sauditas no país também reforça o aprofundamento de uma política de consolidação das relações contemporâneas com Riad.
Após um princípio de normalização de suas relações com os Estados vizinhos e diante das perspectivas de diminuição nas tensões entre Irã e Arábia Saudita a partir da mediação chinesa, o Qatar também se condiciona como um dos centros de atenção da PEB para o Mundo Árabe. Além das perspectivas sobre o aumento dos investimentos qataris no Brasil e o crescimento comercial entre os dois países, a elevação da temperatura política regional com o conflito entre Israel e o Hamas reforçou a importância de Doha no xadrez geopolítico do Oriente Médio, constituindo um interlocutor de relevo nesse contexto.
Nas expectativas por uma maior projeção do Brasil no cenário internacional, coexistindo com o enfrentamento dos desafios domésticos e sistêmicos após quase uma década de declínio na inserção externa e um quadro de desordem global muito mais adverso do que aquele vivenciado no início do século, os Estados Árabes do Golfo Pérsico são estratégicos para os novos caminhos da PEB. Reiterando as suas respectivas importâncias geopolíticas em nível regional e mundial, tais atores se tornam uma espécie de nova porta de entrada do país no Mundo Árabe, representando política e economicamente importantes alternativas no processo de reorientação da ação externa do Brasil.
Mateus José da Silva Santos
Doutorando em História pelo PPGH-UFPel
Membro Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LABGRIMA)
Referências Citadas:
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Exportação e Importação Geral. COMEX STAT. Disponível em: <http://comexstat.mdic.gov.br/pt/geral> . Acesso em: 02 dez. 2023.
MANSOUR, Saleh Al-Safi. Arábia Saudita: política externa e aspectos de suas relações com o Brasil. Brasília: Thesaurus, 1993.
RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017.