[Des]Caminhos da chamada “Guerra Esquecida”: o conflito no Sudão e os interesses do Golfo Árabe por Mateus Santos
Com mais de 150 mil mortos e 14 milhões de pessoas classificadas como refugiadas, o embate entre o exército sudanês e as chamadas Forças de Apoio Rápido (RSF em inglês) foi objeto de discussão no mais recente encontro entre Donald Trump e Mohammed Bin Salman em Washington.
Segundo o presidente dos EUA, MBS e outros líderes árabes teriam lhe solicitado o uso de sua própria influência para construir condições para o fim do conflito (Trump…, 2025). O republicano mencionou explicitamente o interesse em estreitar o diálogo com países considerados chave em uma crise que extrapola as fronteiras sudanesas.
Visto como uma das zonas prioritárias dentro dos conceitos de segurança regional de Riad e Abu-Dhabi, o envolvimento destes no conflito sudanês repercute de forma controversa desde os primeiros passos da guerra. Diferentes olhares acusam os EAU de fornecerem apoio estratégico aos paramilitares da RSF. Tal posição confrontaria até mesmo os interesses de outros aliados de primeira ordem de Mohammed bin Zayed Al-Nahyan (MBZ), tais como Egito e Arábia Saudita, considerados mais próximos, em diferentes níveis, das forças governamentais.
O que faz do conflito sudanês um cenário geoestratégico para a Arábia Saudita e os EAU? Quais as implicações de tal crise para as mais recentes transformações na inserção internacional desses dois países? Essas são questões extremamente importantes no exercício de análise da internacionalização da crise sudanesa.
O envolvimento direto e indireto das duas principais forças centrípetas do mundo árabe na atualidade revela os sentidos de uma projeção diversificada na direção do continente africano. No quadro da elevação da competição estratégica pela África, EAU e Arábia Saudita configuram duas importantes alternativas entre os chamados novos emergentes, ampliando as relações comerciais, oferecendo fontes de financiamento e cooperação em diferentes campos, bem como estabelecendo pontes bilaterais e multilaterais no diálogo político-diplomático. Conforme Maddalena Procopio e Corrado Čok (2025), Abu-Dhabi assumiu certo protagonismo dentro de um movimento mais geral de virada geoeconômica das políticas do Golfo Arábico para a África, ampliando investimentos na área de infraestrutura, logística e energia, além de elevar os seus índices de exportação para o continente africano a partir do seu potencial como Hub Global.
Já a Arábia Saudita, dentro de um movimento mais recente de crescimento progressivo e heterogêneo das relações com o continente negro (Ani; Uwizeyimana, 2022), desenvolve diferentes estratégias de projeção junto à sua fronteira Oeste, combinando a mobilização de antigos recursos como a atuação de organizações religiosas com outras vias como o exercício de mediação de conflitos, cooperação econômica, diálogo político multilateral e até mesmo expansão militar.
O envolvimento de sauditas e emiradenses com os rumos políticos do Sudão não é novo. Riad e Cartum historicamente cultivaram um relacionamento oscilante. Durante várias décadas, o governo sudanês de Omar Al-Bashir foi considerado um desafio para a Casa Saud, tendo em vista as acusações sobre o envolvimento de Cartum com Teerã ou mesmo o papel do governo afro-árabe diante do avanço do terrorismo e da insegurança no Mar Vermelho. Segundo Robert Mason (2023), como uma consolidação da busca pela redução das tensões entre as duas partes, reflexo da necessidade sudanesa em contornar as características de um Estado Pária, houve uma forte cooperação sudanesa em questões de interesse da Arábia Saudita, tais como a Guerra contra os Houthis no Iêmen. Em contrapartida, Riad se tornou mediadora no processo de retirada de parte das sanções do Ocidente ao Sudão, bem como se comprometeu diretamente em elevar a colaboração financeira junto ao governo de Cartum.
O fracasso na transição política sudanesa levou a mudanças no posicionamento de alguns dos principais atores regionais. Se antes Arábia Saudita e EAU convergiam, em certa medida, no apoio ofertado à RSF, o aumento das tensões entre seu principal líder, Mohammed Hamdan Dagalo (Hemedti), e o chefe do exército sudanês, Abdel Fattah al-Burhan, se tornou um fator de divergência entre Riad e Abu-Dhabi na construção das alianças no plano doméstico sudanês. Embora negue qualquer envolvimento, os EAU são considerados como um dos principais aliados de Hemedti em nível internacional. Vale lembrar que desde o governo Bashir, lideranças da RSF acumularam uma série de vantagens envolvendo a exploração de recursos minerais no país, o que se tornou um aspecto chave dentro das estratégias de conquista de apoio no cenário internacional. Já a Arábia Saudita, mesmo afirmando publicamente neutralidade no conflito, demonstra muito mais disposição em apoiar os militares do exército sudanês.
A internacionalização do conflito sudanês evidencia os limites da arquitetura geopolítica do Golfo. As diferentes formas de ingerência de sauditas e emiradenses apontam para o desenvolvimento de formas autônomas de inserção no xadrez geopolítico ao Oeste do Mar Vermelho, zona vista como essencial para a projeção de poder dos dois Estados. Em meio ao complexo processo de convergência de interesses entre Riad e Abu Dhabi desde os tempos da Primavera Árabe, os rumos da Guerra no Sudão parecem cada vez mais passar pelo nível de habilidade diplomática e capacidade de construção de um novo consenso entre tais atores que, pressionados diante da crise humanitária que se alastra com a continuidade dos embates militares, precisarão encontrar formas de resolução para tal situação.
Referências
ANI, Kelechi Johnmary; UWIZEYIMANA, Dominique Emmanuel. Saudi Arabian – African Partnership: Focus on Evolution and Diplomatic Possibilities. Journal of African Foreign Affairs (JoAFA), v. 9, n. 2, Aug. 2022, p. 127 – 140.
MASON, Robert. Saudi Arabia and the United Arab Emirates: Foreign policy and strategic alliances in an uncertain world. Manchester: Manchester University Press, 2023.
MUREITHI, Carlos. Deaths, disappearances and forced recruitment: refugees recount horrors of relentless war in Sudan. In: The Guardian. Oct 2, 2025. https://www.theguardian.com/world/2025/oct/02/refugees-recall-horrors-of-sudan-civil-war
PROCOPIO, Maddalena; Čok, Corrado. Diversification Nations: The Gulf Way to Engage with Africa. European Council On Foreign Relations. March 2025.
TRUMP pledges ‘cooperation and coordination’ to end Sudan’s civil war. In: al-Jazeera. Nov 25, 2025. https://www.aljazeera.com/news/2025/11/19/trump-pledges-cooperation-and-coordination-to-end-sudans-civil-war
Mateus Santos
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Membro-Pesquisador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA).

