Lula, o BRICS Plus e o impasse africano: controvérsias sobre a agenda de reforma do Conselho de Segurança da ONU por Mateus Santos

No dia 29 de abril, um documento de balanço da Reunião dos Chanceleres dos Países Membros do BRICS surpreendeu alguns interlocutores e outros interessados no tema a partir da permanência de uma controvérsia.
Como parte da Declaração da Presidência, atualmente exercida pelo Brasil, as considerações sobre a defesa da Reforma do Conselho de Segurança da ONU, agenda vista como essencial para a constituição de um órgão “mais democrático, representativo, eficaz e eficiente” adquiriu certo esvaziamento diante da inexistência de consenso entre os Estados membros do agrupamento emergente (Brasil, 2025).
Apesar de citar nominalmente Brasil e Índia no quadro dos “países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina” que possam exercer um papel muito mais ativo nesse processo de reconfiguração geográfica do CSNU (Brasil, 2025), a passagem subsequente chama atenção. Diante da afirmação sobre a existência de legitimidade das aspirações de “países africanos” em também ocuparem um lugar em uma possível reforma (Brasil, 2025), seguindo as indicações previstas em documentos como a Declaração de Sirte, uma das bases para a fundação da União Africana, além do próprio Consenso de Ezulwini, adotado pela mesma organização continental em 2005.
No centro das divergências que se tornaram explícitas a partir da fórmula apresentada no documento, à inexistência de uma indicação nominal do representante africano reflete certo fracasso da estratégia diplomática brasileira em conter as divergências entre os países participantes quanto à apreciação do pleito de reforma do CSNU a partir de uma proposta mais coesa, chancelada pelo BRICS Plus. Nos dias que antecederam à divulgação da referida Declaração, diversos veículos de imprensa no Brasil noticiaram o encaminhamento de uma carta do Presidente Lula ao seu par egípcio, Abdel Fatah Al-Sisi. Tal gesto na direção do Cairo visava persuadir o governo daquele país em apoiar a inserção do tema como objeto de defesa do agrupamento emergente, incluindo a manutenção do que fora registrado na XV Reunião de Cúpula quando, além do processo de expansão que marcou posteriormente a entrada do próprio Egito, houve também a aprovação de um documento que explicitamente mencionava Brasil, Índia e África do Sul como prováveis pleiteantes de uma cadeira permanente.
Se as duas ondas de expansão do BRICS a partir de 2023 evidenciaram certa habilidade diplomática e apurada compreensão acerca dos rumos da geopolítica contemporânea ao agregar atores estratégicos no quadro de diferentes regiões do chamado Sul Global, o episódio envolvendo a definição de uma política comum de defesa da reforma do sistema internacional ilustra os desafios de acomodação de diferentes interesses entre atores heterogêneos. No caso do continente africano, as entradas de Egito e Etiópia representaram um importante movimento e incorporação de dois atores que, além de historicamente ocuparem uma posição de destaque dentro da trajetória de existência de um sistema interafricano desde o fim do colonialismo, possuem outras credenciais contemporâneas, tais como a condição de atraentes mercados consumidores, índices de crescimento econômico importantes dentro de um mundo que ainda oscila após a crise de 2008 e a pandemia de covid-19, certa influência em zonas de importante circulação do comércio eurasiano e referências dentro das tendências de diversificação de relações externas, marcas do aprofundamento da reafirmação africana no século XXI (Vizentini, 2010).
Do ponto de vista da natureza desse processo de ampliação do BRICS, um olhar sobre o papel regional dos dois Estados destacados também remete aos dois projetos alternativos de atuação da iniciativa multilateral ainda na década passada. Conforme Catarina Giaccaglia (2024), duas estratégias de diálogo com atores regionais e emergentes se notabilizaram durante esse período. Por um lado, o chamado BRICS Outreach, valorizando o diálogo com importantes representações regionais, incluindo desde autoridades até Estados que conformam presidências de blocos e organizações de diferentes continentes. Por outro, o chamado BRICS Plus, lançado pela China ainda em 2017, como um projeto de ampliação do diálogo com os Estados emergentes. De modo geral, tanto Etiópia quanto Egito atendem as duas perspectivas que, de certo modo, influenciaram no desenvolvimento das duas ondas. Sedes respectivamente da União Africana e da Liga dos Estados Árabes, Addis Abeba e Cairo se comportaram historicamente como importantes interlocutores dentro de tais organismos, tornando-se referenciais nos processos de construção regional.
Etiópia e Egito encontraram no BRICS outro ator que, em grande medida, ocupava uma espécie de “lugar africano” dentro do diálogo semi-institucional dos emergentes. Assumindo, a época, muito mais uma dimensão simbólica e estratégica diante das diferenças entre o seu pleito frente às características dos membros originais do agrupamento e mesmo outros prováveis candidatos de outros continentes (Ribeiro; Moraes, 2015), a entrada sul-africana representou uma espécie de consolidação do movimento de reinserção plena do país no sistema interafricano a partir dos anos 1990, combinando com um forte ativismo de sua diplomacia na direção do mundo emergente e a valorização do papel ocupado por Pretória no contexto de transição vivida a partir do renascimento africano (Stuenkel, 2017).
Tendo na ausência de um processo hegemônico uma marca histórica, o desenvolvimento do regionalismo africano, ainda que sob diversos êxitos ao longo das últimas duas décadas, não culminou necessariamente com a constituição de um projeto de representação externa do continente a partir de um único Estado. Esta é uma das questões a serem levadas em conta quando se avalia o fracasso da atual movimentação do BRICS. A cautela exposta por Egito e Etiópia em meio a esse episódio se torna ilustrativa da necessidade de um aprofundamento do Consenso de Ezulwini, garantindo com que o próprio continente decida qual ou quais Estados possam ser considerados como seus representantes dentro de um processo de reforma do CSNU.
O que, aos olhos brasileiros, revela-se como um impasse africano, em verdade, constitui uma questão central para todo e qualquer processo de garantia de maior representatividade nos organismos internacionais. Num contexto geopolítico e geoeconômico em que a África vai à contramão do mundo em diferentes temas, ao revitalizar seu multilateralismo, expressar importantes indicadores de crescimento econômico e diferentes estratégias de combate ao subdesenvolvimento, à questão da sua representatividade política num processo mais abrangente de revisão da ordem internacional evidencia algumas das principais linhas de força que envolve as particularidades regionais e sub-regionais forjadas a partir de contextos de desenvolvimento em meio às assimetrias do capitalismo histórico.
Do lado da diplomacia brasileira, a nova tentativa de solidificar um projeto de reforma do CSNU, mais uma vez, esbarra nas dificuldades de compreensão e acomodação de diferentes interesses legítimos. Se nos anos 2000, enquanto ainda defendia com maior ênfase a proposta do G-4 (Índia, Brasil, Alemanha e Japão) como norteadora do processo de expansão e encontrava certa resistência diante de alternativas como o próprio Consenso de Elzuwini, a experiência contemporânea demonstra, pelo menos à primeira vista, que o país ainda carece de um diálogo mais abrangente com o continente negro, na perspectiva de elaboração de um arranjo que não assuma uma condição vertical.
Como um dos primeiros grandes desafios do BRICS Plus e da própria presidência brasileira, as controvérsias envolvendo a definição de candidaturas apoiadas pelo agrupamento para uma futura reforma do CSNU evidencia a necessidade de avanço no diálogo semi-institucional sobre os horizontes geopolíticos e geoeconômicos estabelecidos a partir do mundo emergente. A vitória diplomática obtida a partir da ampliação concreta de um objeto que, 20 anos atrás, era apenas um acrônimo constituído por Jim O’Neill, hoje se constitui num novo ponto de partida para um rearranjo de sua natureza e de suas possibilidades concretas de intervenção num mundo em transformação.
Mateus Santos
Doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pesquisador Associado do CENEGRI.
Referências
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Declaração da Presidência da Reunião de Ministros das Relações Exteriores dos Países Membros do BRICS. Nota à Imprensa nº 184, Rio de Janeiro, 29 Abr. 2025.
GIACCAGLIA, Clarisa. La ampliación de BRICS en el marco de un orden internacional de alienamientos complejos: un análisis de las motivaciones de sus miembros plenos y de los estados aspirantes al ingreso. Revista Conjuntura Austral, Porto Alegre, 15, p.51-68, abr./jun. 2024.
RIBEIRO, Elton Jony Jesus; MORAES, Rodrigo Fracalossi de. De BRIC a BRICS: Como a África do Sul ingressou em um clube de gigantes. Contexto internacional, Rio de Janeiro, n.1, v. 37, p.255-287, jan/abr.2015.
STUENKEL, Oliver. BRICS e o futuro da ordem global. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2017.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. A África Moderna: continente em mudança (1960-2010). Porto Alegre: Leitura XXI, 2010